Repetitivo sobre fila de bancos no STJ coloca em jogo presunção de dano moral
Um consumidor aguarda na fila presencial de um banco para ser atendido. O tempo passa e a sua vez, contudo, parece cada vez mais distante de chegar. A cena é comum em instituições financeiras no Brasil e impulsiona centenas de litígios na Justiça.
Sem obter solução na esfera extrajudicial, clientes que esperaram mais tempo na fila de serviços bancários do que prevê a legislação local têm lavrado boletins de ocorrência e contratado advogados para recorrer ao Poder Judiciário, pleiteando indenização por “dano moral presumido”.
Segundo o ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, do Superior Tribunal de Justiça, há um “número expressivo” de processos em trâmite que envolvem a controvérsia. No último dia 24 de maio, o magistrado admitiu a pauta para julgamento sob o rito dos recursos repetitivos.
Ainda não existe um entendimento unificado entre os magistrados sobre o assunto. De um lado, há os que defendem que a espera em fila de banco não ofende os direitos de personalidade e, portanto, não seria indenizável.
De outro, julgadores consideram que o prejuízo deve, sim, ser indenizado, porque o tempo da pessoa é um “objeto dos direitos da personalidade”.
Com o julgamento, a Corte irá definir “se a demora na prestação de serviços bancários superior ao tempo previsto em legislação específica gera dano moral individual in re ipsa apto a ensejar indenização ao consumidor”.
O objetivo é definir se a lentidão excessiva para atendimento bancário presencial gera um tipo de dano moral em que o consumidor não precisaria comprovar a ocorrência efetiva do prejuízo — modalidade conhecida como “dano moral presumido” ou in re ipsa.
O recurso especial indicado pelo tribunal de origem como representativo da controvérsia é do Banco do Brasil contra decisão do Tribunal de Justiça de Goiás (TJ-GO).
Em agosto de 2020, o colegiado fixou, por unanimidade de votos do Órgão Especial, a tese de que a demora no atendimento bancário em prazo superior aos definidos em legislação específica “gera dano moral passível de reparação” ao consumidor.
O TJ-GO considerou que esse dano é presumido, embora admita a produção de prova em contrário (juris tantum). Ao STJ, o banco, por sua vez, alegou que não existem indícios do dano alegado no caso concreto.
A decisão que a Corte adotar ao final do julgamento vai orientar todos os outros processos sobre o assunto que aguardam solução em instâncias inferiores — cuja tramitação foi suspensa até que seja fixada uma tese unificadora.
Precedentes controversos
O advogado Marcos Dessaune, membro do Instituto Brasileiro de Política e Direito do Consumidor (Brasilcon) e colaborador da ConJur, explica que há entendimentos divergentes sobre o assunto dentro das próprias turmas especializadas em Direito Privado do STJ.
Como exemplos, ele cita decisão de 2019 relatada pela ministra Nancy Andrighi, da 3ª Turma, em que a conclusão foi de que “o desrespeito voluntário das garantias legais, com o nítido intuito de otimizar o lucro em prejuízo da qualidade do serviço, revela ofensa aos deveres anexos ao princípio da boa-fé objetiva e configura lesão injusta e intolerável à função social da atividade produtiva e à proteção do tempo útil do consumidor”.
Na hipótese dos autos (REsp 1.737.412/SE), a ministra considerou que o banco optou por não adequar seu serviço aos padrões de qualidade previstos em lei municipal e federal, o que impôs ao consumidor o “desperdício de tempo útil”.
Isso, para a magistrada, é “violação injusta e intolerável ao interesse social de máximo aproveitamento dos recursos produtivos, o que é suficiente para a configuração do dano moral coletivo”.
Andrighi também é a relatora de caso (REsp 1.929.288/TO) em que a 3ª Turma decidiu que “a responsabilização por dano moral coletivo se verifica pelo simples fato da violação, isto é, in re ipsa”.
Na ocasião, a ministra pontuou que a inadequada prestação de serviços bancários, caracterizada pela “reiterada existência de caixas eletrônicos inoperantes, sobretudo por falta de numerário, e pelo consequente excesso de espera em filas” é apta a caracterizar danos morais coletivos.
O entendimento é diametralmente oposto ao da 4ª Turma de Direito Privado. No recurso especial 1.647.452/RO, por exemplo, o ministro relator Luis Felipe Salomão entendeu que o direito à reparação de dano moral somente “exsurge de condutas que ofendam direitos da personalidade”.
Para o ministro, a espera em fila de banco, supermercado, farmácia, e em repartições públicas, dentre outros setores, em regra, “é mero desconforto que não tem o condão de afetar direito da personalidade, isto é, interferir intensamente no equilíbrio psicológico do consumidor do serviço (saúde mental)”.
Conclusão semelhante foi adotada pela 4ª Turma em decisão de 2020 (REsp 1.406.245/SP), na qual Salomão reforçou que “o mero dissabor, aborrecimento, mágoa, irritação ou sensibilidade exacerbada estão fora da órbita do dano moral”.
O magistrado considerou que, além de “fazerem parte da normalidade do nosso dia a dia”, essas situações “não são tão intensas e duradouras, a ponto de romper o equilíbrio psicológico do indivíduo”.
No centro desse debate, segundo Dessaune, estão as diferentes definições adotadas no meio jurídico sobre o que configuraria “dano” e “dano moral”.
De acordo com o especialista em defesa do consumidor, os conceitos são abordados pela doutrina brasileira sob diferentes perspectivas e com nomenclaturas variadas, “o que não raro gera problemas na sua compreensão e aplicação”.
No artigo “Demora excessiva em atendimento bancário gera dano moral in re ipsa”, Dessaune afirma que o conceito de dano moral foi ampliado ao longo dos anos.
“[O conceito] partiu da noção de dor e sofrimento anímico para alcançar, atualmente, o prejuízo não econômico decorrente da lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado, compreendendo os bens objeto dos direitos da personalidade, como o “tempo” da pessoa”, afirma.
O advogado explica que o dano moral stricto sensu é o prejuízo não econômico que decorre da “lesão à integridade psicofísica da pessoa”, cujo resultado geralmente são sentimentos negativos como a dor e o sofrimento.
Já o dano moral lato sensu, por sua vez, é o prejuízo não econômico que decorre da “lesão a bem extrapatrimonial juridicamente tutelado”, abrangendo os bens que são objeto dos direitos da personalidade — aí entra o tempo do consumidor.
Tempo perdido
Dessaune é autor da “Teoria do Desvio Produtivo do Consumidor”, tese segundo a qual o tempo vital do consumidor é um bem jurídico e, se desperdiçado para a solução de problemas gerados por maus fornecedores, constitui dano indenizável.
Para ele, a jurisprudência tradicional, que considera que nesses casos só há “mero aborrecimento” ao consumidor, “revela um raciocínio erigido sobre bases equivocadas”.
“O primeiro equívoco é que o conceito de dano moral enfatizaria as consequências emocionais da lesão, enquanto ele já evoluiu para centrar-se no bem jurídico atingido”, aponta o advogado.
O segundo equívoco, segundo ele, é considerar que o principal bem jurídico atingido nessas situações seria a integridade psicofísica do consumidor: “Na realidade, são o seu tempo vital e as atividades existenciais que cada pessoa escolhe nele realizar — como trabalho, estudo, descanso, lazer, convívio social e familiar”.
Julgar que esse tempo existencial não é juridicamente tutelado é outra falha apontada pelo especialista. Ele ressalta que o tempo do consumidor é protegido tanto no rol aberto dos direitos da personalidade quanto no âmbito do direito fundamental à vida.
“Por conseguinte, o lógico é concluir que os eventos de desvio produtivo do consumidor acarretam, no mínimo, dano moral lato sensu compensável”, analisa.
Para Dessaune, a demora excessiva na prestação de serviços bancários gera dano moral lato sensu presumido (in re ipsa) pela lesão ao tempo existencial do consumidor e enseja sua reparação, quer em ação individual quer em tutela coletiva.
“O tempo é o suporte implícito da vida, e a vida, enquanto direito fundamental, constitui-se das próprias atividades existenciais que cada um escolhe nela realizar”, diz.
“Logo, um evento de desvio produtivo traz como resultado um dano que, mais do que moral, é existencial, pela alteração prejudicial do cotidiano e/ou do projeto de vida do consumidor.”
O advogado acredita que a ampliação conceitual do dano moral permite o reconhecimento de novas categorias de danos extrapatrimoniais para além da esfera psicofísica da pessoa. O dano temporal seria um exemplo disso.
Quanto tempo é tempo demais?
A legislação sobre o tempo máximo de espera por atendimento bancário varia em cada município ou estado. Em média, o limite de espera em dias de movimento normal é de 20 minutos.
Em Goiânia, por exemplo, a Lei Estadual 7.878/99 estabelece que o tempo de espera pelo atendimento na capital em dias normais é de no máximo 20 minutos na fila. Antes e depois de feriados, é de 30 minutos.
Em Aracaju, a Lei Municipal 3.441/2007 assegura que o consumidor não espere em filas de atendimento de agências bancárias por mais de 15 minutos em dias normais. O limite sobe para 30 minutos às vésperas e após os feriados prolongados e nos dias de pagamento dos funcionários públicos municipais, estaduais e federais.
Em São Paulo, pela Lei Municipal 13.948/2005, o tempo máximo de espera é de 15 minutos para dias normais. Na véspera e depois de feriados e dias de grande movimento, o limite sobre para 25. Já nos dias de pagamento de funcionários públicos, é de 30 minutos.
REsp 1.962.275
Fonte: Conjur