Na semana passada, a 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná – TJPR proferiu uma decisão inédita: por unanimidade, os desembargadores reconheceram que animais não-humanos podem constar como autores de ações judiciais na defesa de seus próprios direitos. A decisão foi favorável para Skype e Rambo, dois cães vítimas de maus-tratos.
Uma organização em prol dos bichos de Cascavel, no interior do Paraná, serviu de meio para que os animais ingressassem na Justiça contra os antigos donos, que viajaram e os deixaram sozinhos por 29 dias. Skype e Rambo pediam pensão mensal para manutenção da própria vida digna, além de indenização por dano moral decorrente dos maus-tratos e da situação de abandono.
O processo foi extinto em primeiro grau, porque o juízo entendeu que os cães não têm capacidade para ser parte em processo. No recurso, o TJPR deu a decisão favorável. Agora, o caso voltará para a Justiça de origem a fim de que se dê prosseguimento ao feito. Nas redes sociais, a advogada e protetora Evelyne Paludo, que atuou no caso, classificou a decisão como um “precedente, uma quebra de paradigma e uma nova forma de olhar o Direito”.
Marco e conquista histórica
Membro do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM, o professor Camilo Henrique Silva é coordenador do livro “Família multiespécie: Animais de estimação e direito”, pioneiro sobre o tema. A publicação, lançada em 2020 pela Editora Zakarewicz, foi uma parceria com Tereza Rodrigues Vieira, também membro do IBDFAM.
Para o especialista, a decisão da 7ª Câmara Cível do TJPR é um marco e uma conquista histórica para os animais não humanos na seara jurídica. “Aceitar o animal não humano como autor em demanda judicial é reconhecer sua condição de sujeito de direito. O posicionamento reforça a luta da advocacia animalista em prol dos animais não humanos e pontua, de forma clara, a importância do Direito Animal no Brasil.”
Segundo Camilo, há uma repercussão no Direito das Famílias justamente no tensionamento pelo reconhecimento dos interesses e dos direitos dos animais não humanos. “Se hoje temos a chamada ‘família multiespécie’, em que o animal de estimação é considerado um membro familiar, nada mais razoável é a defesa de seus interesses, em analogia aos dos demais integrantes humanos.”
“As relações jurídicas familiares precisam aceitar os direitos e interesses dos animais não humanos, como, por exemplo, a percepção de alimentos, regulamentação de guarda e visita, sucessão hereditária e testamentária. Portanto, a repercussão no Direito das Famílias é reconhecer a condição de sujeito de direito dos animais não humanos, e, a partir de então, criar condições favoráveis para a efetivação desses interesses, como no caso do Skype e do Rambo.”
Divergências no meio jurídico
A discussão, contudo, não está pacificada no meio jurídico. “A grande divergência é aceitar os animais não humanos como sujeitos de direitos. Essa discussão extrapola o aspecto legal, adentra na seara econômica, cultural, religiosa, social e política. Pelo âmbito do Direito Animal, não há, por enquanto, ressalvas a serem feitas na decisão, mas claramente ela desafia a sociedade brasileira a lidar com o paulatino reconhecimento dos direitos dos animais não humanos a partir do Poder Judiciário”, frisa Camilo.
O juiz Rafael Calmon, também membro do IBDFAM, comenta: “Lamentavelmente os entendimentos dos tribunais brasileiros não necessariamente vêm a favor desse entendimento esposado com brilhantismo pelo TJPR ao reconhecer a legitimidade animal para propositura de demandas judiciais”. O magistrado é autor do e-book “Pet não se partilha: se compartilha!”, sobre famílias multiespécies, lançado pela Saraiva Jur em julho.
“Estamos atravessando uma fase em que os animais estão deixando de ser considerados coisa mundo afora. O Brasil ainda não adotou de vez esse posicionamento, embora existam diversos projetos de lei em tramitação atribuindo uma modificação a seu estado, deixando de considerá-los ‘coisas’ ao menos para algumas relações.”
Virada de entendimento
Para Rafael Calmon, a decisão do TJPR é de grande importância para o ordenamento jurídico brasileiro. O magistrado frisa que está em curso uma “virada de entendimento” sobre o assunto, em que se abandona de vez o posicionamento expresso no Código Civil brasileiro, que ainda trata os animais como coisas.
“Legislações de diversos países do mundo ocidental já estão ‘descoisificando’ os animais para considerá-los como seres especiais, dotados de senciência. Há países que já avançaram ainda mais e reconhecem os animais não humanos como verdadeiros sujeitos de direito”, observa o juiz.
Processo: 0059204-56.2020.8.16.0000