Um pai deve pagar à filha indenização por danos morais em R$ 30 mil, em razão do rompimento abrupto da relação quando ela tinha apenas seis anos de idade. O laudo pericial apontou que, pelo abandono afetivo, a menina sofreu graves consequências psicológicas e problemas de saúde eventuais, como tonturas, enjoos e crises de ansiedade. A decisão é da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça – STJ.
A ação foi ajuizada pela filha, representada por sua mãe, quando ela tinha 14 anos. Sustentou que a relação com o pai terminou com o fim da união estável entre os pais, quando o genitor deixou o lar e abdicou de participar de sua educação, criação e de seu desenvolvimento. Por isso, a menina precisou recorrer a tratamento psicológico.
Em primeiro grau, foi fixada indenização de R$ 3 mil. Em segundo grau, a ação foi julgada improcedente. Para o Tribunal, não haveria como quantificar a dor decorrente da falta de amor ou cuidado no âmbito da relação parental. O entendimento foi de que a condenação por danos morais não compensaria a autora, não cumpriria a função punitiva-pedagógica, tampouco encerraria o sofrimento ou reconstituiria a relação entre pai e filha.
Não existem ex-pai e ex-filho, ressaltou a ministra Nancy Andrighi
Já a Terceira Turma do STJ considerou não haver restrição legal para a aplicação das regras de responsabilidade civil no âmbito das relações familiares, porque os artigos 186 e 927 do Código Civil tratam do tema de forma ampla e irrestrita. “O recorrido ignorou uma conhecida máxima: existem as figuras do ex-marido e do ex-convivente, mas não existem as figuras do ex-pai e do ex-filho”, afirmou a relatora do recurso da filha, ministra Nancy Andrighi.
Segundo Andrighi, a reparação de danos em virtude do abandono afetivo tem fundamento jurídico próprio, bem como causa específica e autônoma. Não se confundem com as situações de prestação de alimentos ou perda do poder familiar, relacionadas ao dever jurídico de exercer a parentalidade responsavelmente.
Para a magistrada, se a parentalidade é exercida de maneira irresponsável, negligente ou nociva aos interesses dos filhos, e se dessas ações ou omissões decorrem traumas ou prejuízos comprovados, não há impedimento para que os pais sejam condenados a reparar os danos experimentados pelos filhos. Esses abalos morais, afinal, podem ser quantificados como qualquer outra espécie de reparação moral indenizável.
O número do processo não foi divulgado em razão de segredo judicial.
Condenação foi por violação do dever de cuidado, explica especialista
Diretor nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM e promotor de Justiça do Ministério Público da Bahia – MP-BA, Cristiano Chaves de Farias comenta a decisão. O especialista tem opinião “absolutamente favorável e de concordância” com o entendimento apresentado pela Terceira Turma do STJ.
“A decisão apenas reitera e corrobora decisões anteriores. O fundamento é muito claro: não trata tecnicamente do abandono afetivo, mas da violação do dever de cuidado. A orientação da jurisprudência do STJ é no sentido de que cabe indenização pela violação do dever de cuidado, não por uma violação afetiva em si”, comenta Cristiano.
A condenação é amparada em precedentes já concebidos sobre o tema, segundo o presidente da Comissão de Promotores de Família do IBDFAM. “Uma coisa é certa: a decisão salvaguarda a relação entre pais e filhos e prestigia uma concepção de responsabilidade familiar, que vem dos artigos 226 e 227 da Constituição Federal.”
“Tem uma perspectiva alvissareira de que o núcleo familiar deve ser pautado pela responsabilidade parental e afetiva, com solidariedade e responsabilidade. Há a consolidação do entendimento de que há espaço, no sistema jurídico brasileiro, para falar em responsabilidade civil pela violação do dever de cuidado, já que o afeto, em si, não seria por si só um valor jurídico exigível.”
Ele explica: “O afeto serve como uma base de interpretação, um importante elemento integrador das relações de família, mas não seria exigido isoladamente, como diz a própria jurisprudência do STJ”. O tema também tem destaque no livro Teoria Geral do Afeto, escrito por Cristiano em parceria com Conrado Paulino da Rosa, também diretor nacional do IBDFAM.
Entendimento isolado do Tribunal de origem
Segundo Cristiano, a decisão de segundo grau, agora invertida pelo STJ, corresponde a um entendimento isolado. “A orientação do STJ é muito firme no sentido de que não cabe indenização por abandono afetivo, mas cabe indenização pelo dever de cuidado”, avalia. Houve, então, pelo Tribunal local, uma incorreta aplicação da orientação do STJ, já assumida pela Terceira e Quarta Turma.
Trata-se, então, de uma jurisprudência dominante e pacífica, diz o promotor de Justiça. “O afeto é visto por uma ótica mais subjetiva e material. O cuidado, por uma ótica mais objetiva e materializável. Do ponto de vista vernacular, gramatical, podemos ter efetivamente algumas hesitações no uso correto da técnica linguística.”
“Talvez o Tribunal de origem não tenha feito a correta interpretação da jurisprudência, o que é uma lástima, porque, com a teoria dos precedentes que é acolhida pelo Código de Processo Civil – CPC com força normativa, o ideal era ter uma correta aplicação da teoria dos precedentes. Felizmente, o STJ repara e mais uma vez consolida a sua orientação jurisprudencial”, conclui Cristiano Chaves de Faria.