Na responsabilidade civil objetiva, os danos deixam de ser considerados acontecimentos extraordinários, ocorrências inesperadas e atribuíveis unicamente à fatalidade, para se tornar consequências, na medida do possível, previsíveis e até mesmo naturais do exercício de atividades geradoras de perigo, cujos danos demandam, por imperativo de solidariedade e justiça social, a adequada reparação.
Assim entendeu a 4ª Câmara de Direito Privado do Tribunal de Justiça de São Paulo ao confirmar a condenação da São Paulo Turismo, do Parque Anhembi e da Liga Independente das Escolas de Samba de São Paulo a indenizar a mãe e o filho de um vendedor ambulante que foi morto no Sambódromo do Anhembi, às vésperas do Carnaval de 2012.
As instituições deverão pagar R$ 30 mil por danos morais para cada um, além de pensão mensal de um salário mínimo até o filho completar 25 anos, retroativa à data da morte do ambulante. A vítima trabalhava no Sambódromo durante o ensaio técnico das escolas de samba, quando ocorreu um desentendimento entre o chefe da equipe de fiscalização e os ambulantes que, segundo as regras do evento, não poderiam estar ali.
A vítima tentou intervir, mas foi ferido com um canivete pelo fiscal e acabou morrendo. O agressor foi julgado e condenado na esfera criminal pelo crime de homicídio. Segundo o relator do recurso, desembargador Enio Zuliani, a Liga responde pelos danos que seu encarregado provoca durante o exercício da atividade desempenhada e para a qual foi indicado (artigo 932, III, do CC).
Para o magistrado, também não há como excluir a São Paulo Turismo, que alugou o espaço para os desfiles de carnaval, da responsabilidade pela morte do ambulante: “O argumento de que a locatária ou as escolas da Liga seriam as únicas responsáveis, porque assumiriam o controle e segurança do evento, contraria a ordem jurídica e depõe contra a tutela dos direitos das vítimas”.
Conforme Zuliani, apenas redigir um texto especificando que a responsabilidade seria das escolas de samba representadas pela Liga não exclui a norma que cai sobre os ombros da proprietária da área e que tinha total conhecimento do risco (artigo 927, parágrafo único, do CC). O magistrado disse ainda que espetáculos em arenas de bilheteria intensa são “ambientes perigosos”.
“Determinadas posições jurídicas não são delegáveis ou disponíveis, como o de ceder um espaço para aglomerações e acesso de milhares de pessoas (público heterogêneo) e inserir regras para não ter obrigações diante das lesões daqueles que lá ingressam para entretenimento ou trabalho, inclusive clandestino. Trata-se de cláusula não escrita e que não sobrevive diante da morte de alguém que entrou no recinto para vender bebidas, lanches, etc.”, afirmou.
O relator também destacou que a propriedade de grandes palcos não cessa ou se finda com a locação ou com cláusulas que transferem responsabilidade ao locatário, especialmente quando não se investiga se o aparato de controle de tragédias e crimes será executado com segurança eficiente. “É irresponsabilidade social transferir o caos”, completou.
Fortuito interno
O desembargador ressaltou ainda que a morte do vendedor resultou da ação de um profissional vinculado a uma atividade (controle de acesso de ambulantes) inserida no objeto do contrato celebrado entre os réus. Trata-se, portanto, de “fortuito interno” que “não exclui a responsabilidade” das instituições de indenizar os familiares das vítimas.
Ainda segundo Zuliani, a vítima era um trabalhador, não desempregado, e pagava pensão alimentícia, o que reforça o fator de dependência econômica do filho para com ele: “No dia dos fatos tentava vender amendoim, água e outros produtos para as pessoas que assistiam ao ensaio. O trabalho informal qualifica o sujeito e lhe dá dignidade para amparar os filhos.”
0009192-41.2013.8.26.0053
Fonte: Conjur